sábado, 10 de outubro de 2009

Pelo fim da cessão definitiva

Chegou às livrarias em dois volumes, no final do ano passado, a obra “As 101 melhores canções do Século XX”, da série Songbook – organizada pelo precocemente falecido Almir Chediak. As letras e cifras das mais representativas canções brasileiras do século passado – que vão desde “Conversa de Botequim”, do Noel, e “As rosas não falam”, do gênio Cartola; até, “A Banda”, de Chico Buarque, e “Aquele Abraço”, do Gil – somam-se às informações acerca dos detentores dos direitos autorais sob as canções, O deleite com as belíssimas letras e melodias, entretanto, é fortemente prejudicado quando se constata que a imensa maioria das 101 canções tem seus direitos autorais cedidos, de maneira definitiva, a editoras multinacionais.
É lamentável que os grandes grupos editoriais europeus e norte-americanos sejam os donos das maiores preciosidades da música brasileira, por toda a vida dos compositores, e por mais 70 anos após o ano seguinte à sua morte. São canções cujos autores, em regra, morreram ou se encontram em situação de pobreza, mas que continuam gerando lucros para as editoras no mundo inteiro, que em regra não são repassados aos autores. Ao assinar um contrato com uma editora musical, é de se imaginar que o compositor não pretendia vender suas canções para sempre.
Os autores precisam de dinheiro para sobreviver, e os contratos, em princípio, representam e uma espécie de fomento à atividade dos criadores. Porém, as editoras passam gozar do arbítrio de autorizar as utilizações das músicas de acordo com interesses puramente econômicos, e, na maior parte dos casos, alheios aos interesses dos autores; deixando de prestar contas e repassar corretamente os lucros aos criadores das canções. E o problema não se resume a isso.
Para além de se tornarem donas das canções, as editoras passam a controlar também os próprios compositores. Por meio da concessão de adiantamentos em dinheiro, utilizados como chamarizes, submetem os autores a contratos de exclusividade para a cessão de suas obras futuras. Por meio de contratos sabidamente prejudiciais aos compositores, prevêem que as quantias concedidas como adiantamentos sejam quitadas somente se as obras cedidas alcançarem patamares de vendagem, previamente estabelecidos, irreais e impossíveis de serem alcançados.
Como a quitação do adiantamento é condição para a liberação do autor, a conseqüência prática é dramática: os compositores se encontram, em sua imensa maioria, presos a editoras musicais por prazos que extrapolam os cinco anos fixados pela Lei de Direitos Autorais, e obrigados a entregar novas canções para conseguirem sua alforria. Não lhes resta outra possibilidade senão a de ir à justiça para tentar reverter esses abusos, e a boa notícia é que o judiciário brasileiro tem feito seu papel para alterar a situação.
Autores como Gilberto Gil e Dudu Falcão conseguiram reaver, com decisões de segunda instância, canções que haviam sido cedidas de maneira definitiva às editoras musicais. Outro caso emblemático é o do artista Zé Ramalho, também revertido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, para garantir algo que deveria ser um pilar do direito autoral: gravar as canções compostas por ele, pela gravadora que quiser. Mais recentemente, o Juízo da 11ª Vara Cível do Rio determinou a rescisão do contrato firmado entre Erasmo Carlos e Roberto Carlos com uma editora multinacional, e a retomada do controle econômico de uma série de obras que estavam ad eternum nas mãos da editora.
Apesar de já serem motivo de alento, essas decisões tiveram como beneficiários compositores conhecidos, com capacidade econômica para arcarem com os custos de longas ações judiciais. Por isso, é premente garantir tais benefícios a todos os autores, e a oportunidade de fazê-lo bate à porta neste momento: o Ministério da Cultura prepara um ante-projeto de lei que visa à reforma da Lei 9.610/98, com previsão de ser enviado à consulta pública em breve. Desde já, os autores devem manter sua tradição de grandes protagonistas da vida política brasileira, para que haja alterações substanciais no texto da atual lei de direitos autorais; porém, essa tarefa não é só dos compositores.
Espera-se que o Ministério da Cultura esteja atento às demandas dos autores, e proponha alterações na Lei 9.610/98 que limitem o tempo de cessão das obras musicais, para garantir, entre outros fatores, que os criadores possam fiscalizar o uso econômico de suas criações, direito fundamental previsto na Constituição da República. Passou da hora de se valorizar essa classe, verdadeira metonímia dos brasileiros, que resiste com seu ímpeto criativo, apesar de todas as dificuldades a que é submetida.

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